terça-feira, 11 de agosto de 2009

Diploma para técnico de futebol

Irônica a informação de hoje, do Folha de S. Paulo, sobre exigência de diploma para técnicos de futebol, no ano em que o Supremo derrubou a exigência de diploma para jornalistas.

Não há como comparar as medidas, mas que é piada pronta, é.

A imprensa dava de ombros ao diploma ao contratar articulistas. Mas a não obrigatoriedade é danosa aos repórteres. A médio prazo, é até uma boa, pois fechará muito curso caça-níquel de Jornalismo (uns 13 mil formandos/ano). Mas é canibalizador em cidades sem mercado anunciante sólido (como há nas capitais de SP, RJ, MG, RS, BA etc), em que o sustento da mídia é o político local. A farra do contratante de um profissional e muitos estagiários por redação, com gente mais mal paga e despreparada.

Gilmar Mendes diz que a medida amplia a liberdade de expressão. É preciso garantir a liberdade de articulistas e fontes consultadas, mas trabalhar a notícia exige mais do que isso.

O Supremo desconsiderou que o jornalismo é atividade que requer trabalho técnico com a informação, que não se esgota em consultar as partes envolvidas, mas checar, comprovar versões. Isso, uma pessoa sem formação não aprende apenas atuando na redação (onde aprenderá também vícios e atos anti-éticos, sem ninguém para alertá-lo, como na faculdade).

Agora, a CBF exige o oposto de uma profissão que condena o parreirismo pseudoteórico. A lei já obrigava os técnicos ao curso de Educação Física. Mas o corpo mole imperava.

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Intimidade no Nextell

A mulher está ao Nextell e o volume da coisa é tal que vence o barulho do trânsito para quem passa tomar ciência da conversa.

Somos informados que uma colega de trabalho de ambas quer ganhar sem trabalhar, tem histórico de roubo na tesouraria e persegue as duas no escritório. É mais um capítulo do inferno astral da interlocutora, que anuncia à amiga de Nextell: “meu marido ficou brocha”.

Fosse há vinte anos e talvez não merecêssemos ouvir tal inconveniência – não a do diálogo de fofoca, mas a de sua democrática exposição.

Nos anos 80, anos de meus 20 anos, talvez não fosse maior o recato entre amigas. É provável, no entanto, que a confidência ficasse restrita ao círculo da amizade de fé.

O fato é que a exposição da própria intimidade não pode ser analisada como pouco tempo atrás o foi, como uma anomalia do espetáculo a intrometer-se em nosso cotidiano.

Ela já parece habitar a paisagem interna do brasileiro médio. É realidade que não mais nos estranha.

Queime-se o moralista que condena o reality show do momento. A tranquilidade na própria exposição mostra uma mudança de conduta pública que não me parece acidental e passageira.

Big Brother Brasil aumentou sua premiação para R$ 10 milhões. A Nextell, por sua vez, comemora os 700 mil novos usuários desde 2005 – a maioria no mercado corporativo – de seu telefone com tecnologia push-to-talk (PTT, ligação direta via rádio).

A exposição da intimidade deixou de ser variável cultural para ter viabilidade comercial.

Quem sabe virou componente de civilização.

sexta-feira, 19 de junho de 2009

A linguística de Patinhas

O filósofo Jean Lauand colecionou as (cinco) versões brasileiras da mesma história de Tio Patinhas. Tio Patinhas e os Índios Nanicós (EUA, 1956), de Carl Barks, circulou no Brasil em abril de 1958, 67, 82, 88 e dezembro de 2004.

Cada edição mostra o esforço da indústria de sintonizar a linguagem mirim do momento. Flagra-se, com isso, o domínio de linguagem que cada época (e seus adultos) atribui à garotada.

Compare as duas versões (67 e 2004) da mesma prancha (clique para aumentá-las), uma das 27 páginas da história de 208 quadros. Para fugir da poluição de Patópolis, Patinhas compra terras nos Grandes Lagos no Norte. Mas, com Donald e sobrinhos, descobre que os pigmeus-título já são os donos do lugar.

Entre 58 e 2004, cai a presença dos pronomes oblíquos. Donald diz “Peguei-o em flagrante” (1958); “Peguei você em flagrante” (2004). E o futuro simples (ficaremos) de 58 vira forma composta (vamos ficar) depois.
Há mudanças que sugerem vigências sociais de época. Em 58, Huguinho, Zezinho e Luizinho chamam Donald de “senhor”; em 2004, de “você”.

Mudanças conceituais no léxico revelam convivência com ideias de cada geração. Já no primeiro quadro, só a partir de 1982 surge a palavra “poluição” numa fala de Patinhas. Em 58 e 67 era "neblina”. Nesse quadro há uma fórmula hoje não usual: "ir ter”, em 58 e 67: “Tio Patinhas vai ter às terras do Norte”, substituída por “vai às terras do Norte” em 82 e 88.

A tendência do léxico das edições antigas era a de palavras mais cultas. Comparando 58 a 2004: “Ademais” x “Além disso”; “ambrosia” x “perfume”; “Que pretende caçar?” x “O que vai caçar?”; "Acampam num aprazível banco de areia" x "Acampam numa barra arenosa".

Há diferença de repertório literário. Os nanicós falam por versos (A Canção de Hiawatha, de Henry Wadsworth Longfellow). As edições pré-2004 a trocam pela Canção do Tamoio, de Gonçalves Dias. Já 2004 opta pelo obscuro e servil decalque.

Suspeita-se que não é o nível da criançada que declinou em cinco décadas. Mas o da indústria cultural que a abastece.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Domínio de linguagem

Bráulio Tavares, crítico, compositor e colunista de Língua, me mandou uma série de textos de sua coluna em jornais nordestinos. Destaco o trecho de um, a meu ver a síntese perfeita do que podemos considerar a elefantíase do discurso acadêmico, que contamina até bilhetinhos e e-mails universitários (e não só).

"Recebi um convite para um evento cuja justificativa dizia:

'O objetivo precípuo deste conclave é questionar o fazer literário, dissecar seus processos, balizar seu desenvolvimento e estabelecer metas para a construção de um discurso literário brasileiro nesta época de diluição globalizada e de hegemonia dos discursos popularescos e dos gêneros comerciais'.

Pensei:
'O cara escreve assim para mostrar que domina a linguagem'.

Depois pensei:
'O cara capaz de escrever assim a sério provavelmente só consegue escrever assim. Ele não domina a linguagem. Ele aprendeu a duras penas uma linguagem – chamemo-la burocratês ou academês – e no final deixou-se dominar por ela, a ponto de ser-lhe impossível utilizar outra'”.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Língua é sociedade

Na historia das línguas, há sempre confronto entre as forças de mudança e as de repressão.

No início do século 20, mesmo um linguista de estirpe como Mario Barreto (1879-1931) condenava verbos então recentes, como “revolucionar” e “solucionar”, por já existirem os na época consagrados “revolver” e “solver”.

Como sabemos, ele não teve sucesso, porque a sociedade fala mais alto. O combate a novas formas pode frear a criação descontrolada (lembre a retração de “a nível de”), mas não é capaz de impedir a criação de inúmeras outras formas.

Língua não é só código produtor de sentido, é também social. Não é mero sistema formal, mas corrente de significados em comum.

Muitas inovações populares nem sempre se configuram como aberração linguística, mas escandalizam por serem socialmente micadas. E terminam rejeitadas.

O erro de português pode revelar, não raro, um pensamento influenciado por outra lei gramatical.

Quem opta por “houveram problemas" talvez se fie em “ocorreram problemas”. Se há “garfo” (e não “galfo”), pensa-se, decerto haverá “tarco” (talco); se há “pomar” (não “pomal”), há “carreter” (carretel). E “entrega a domicílio” soa estranho a quem crê que não se entrega “à casa”, mas “em casa” (pela razão que não se “monta a cavalo” por não se “montar a burro”). Daí a preferência pelo condenado “entrega em domicílio”. Mas, enquanto houver incômodo comum, talvez tais deslizes não se fixem no idioma.

A norma gramatical é o costume social dominante. Alguns costumes passam ao sistema da língua, outros não. Há construções recentes que podem se consagrar, ao modo de “Esta varanda bate sol à tarde” ou “Moro subindo essa rua” (exemplos de José Carlos de Azeredo, da Uerj). Ou “Quem aqui o pai fuma?”, dito pelo governador José Serra (acenando acima) numa escola de São Paulo (exemplo de Sírio Possenti, da Unicamp: há idiomas, lembra ele, com estrutura “sujeito-predicado” e outros com “tópico-comentário”. Já o português é misto: em “O Brasil, ele também está em crise”, “Brasil” é o tópico da oração e “ele também...”, o comentário. Daí a construção ter pinta de incorreta, mas ser sintática e socialmente aceita).

Desconfia-se que esses tipos de construção sejam incorporados à gramática do brasileiro médio. Ao fim, ele é quem ri por último.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Por encomenda

Fazer, por outras necessidades, o que não se faria por opção estética já levou muito artista a contorcionismos criativos.

Vladimir Maiakovsky criou cartazes (ao lado), com o desenhista Rodchenko, para vender brinquedos produzidos em escala na União Soviética do início dos anos 20. Até embalagens de bala e uniformes o poeta desenvolveu.

Clarice Lispector traduziu Agatha Christie e foi ghost writer de textos de etiqueta.

Scott Fitzgerald e William Faulkner foram roteiristas (terminaram dragados por Hollywood).

O pintor Vassily Kandinsky criou logotipos para empresas.

Parnasianos como Bastos Tigre e Olavo Bilac foram profissionais da publicidade, fazendo sonetos para reclames de remédios e cervejarias. É de Tigre o slogan da Bayer (“Se é Bayer, é Bom”).

Criadores de obras nem sempre fáceis ao consumo rápido e à banalização comercial, esses artistas terminaram aceitando, por encomenda, um esquema industrial e desenvolvendo linguagem numa escala artística à parte.

Juntaram, por opção, a fome com a vontade de comer.

terça-feira, 26 de maio de 2009

O adjetivo marginal

O adjetivo virou o primo pobre do substantivo. Em manuais sobre técnicas de escrita, é o vilão das frases. Cortá-lo de um texto, assim como arrancar advérbios e tudo o que encha linguiça, é regra no jornalismo e na administração, sob a alegação de que não alteram a estrutura da frase e o texto fica mais legível com vocábulos sem nuanças e margem para dúvidas. Em raciocínios mais demorados, são considerados mais difíceis de registrar na memória que os substantivos, os termos de relação ou os verbos.

Parte-se do justificável princípio de que quem nos escuta deve ter a mais fiel descrição do que é apresentado, sem ser colocado numa zona de incerteza, como fazem os adjetivos e advérbios que implicam juízo de valor (dizer “bonito/feio” sob o critério de quem, cara pálida, de quem fala ou de quem escuta? Afirmar que “absolutamente” algo ocorrerá é não garantir grande coisa).

Tal princípio, usado indiscriminadamente, criou uma fobia ao adjetivo. Mas ele pode, sim, ser usado para tornar uma descrição mais precisa. “Um cavalo velho e ferido, com cauda macerada” não é o mesmo que dizer "um cavalo com cauda". A intenção de quem enuncia é que pode ditar se uma nuance deve ou não ser eliminada, se é mais preciso qualificar o que se diz ou dizê-lo, simplesmente (o que também é afirmação adjetiva: como saber que uma nuance é necessária?).

Há sempre quem se possa inspirar em Frei Betto (Caros Amigos, novembro de 2002, na foto) e avaliar que quem se dispõe a ser compreendido por todo tipo de gente, e não só por uma elite, deve fazer raciocínios ricos em sinônimos, não necessariamente pobres em adjetivos. É ser capar de não apenas constatar genericamente que a situação social está ruim, mas descrever os sintomas desta situação.

Com adjetivos, se necessário.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Telefone sem fio

Cuidado com as citações. François-Marie Arouet de Voltaire (1694-1778), por exemplo, jamais escreveu a frase lapidar:
Não concordo com o que você diz, mas defenderei até à morte seu direito de dizê-lo.
Elogio do estatuto democrático e da liberdade de expressão, a frase é invenção da inglesa Evellyn Beatrice Hall (pseudônimo: S. G. Tallentyre, 1868-1919), biógrafa de Voltaire. Está em The Friends of Voltaire (1906) e se referia à idéia que a figura dele expressava. Em Lendas, Mitos e Mentiras (Ediouro, 2005), Richard Shenkman relata o caso, que não é isolado:

E, contudo, ela se move!
A frase é improvável num julgamento linha-dura como o que passou Galileu Galilei (1564-1642) por defender conceitos como o de que a Terra girava em volta do Sol, em Diálogos. Nem interessa que a frase tenha sido dita, mesmo baixinho, posto que ninguém a ouviu, mas o mito se espalhou entre seguidores de Galileu, o que o poupou da inglória fama de covarde ante os inquisidores, em 22 de junho de 1633.

Sangue, suor e lágrimas.
Em discurso de 13 de maio de 1940, Winston Churchill (1864-1965) anunciava que os anos seguintes seriam de “privações, sangue, suor e lágrimas”. Mas ele tirou a frase de Byron, que por sua vez a teria tirado de John Donne.

Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na História.
A carta-testamento de Getúlio Vargas é de José Soares Maciel Filho, presidente do BNDE (1951 e 54) e da Sumoc (atual Banco Central). Vargas encomendara o texto para sua renúncia, adaptou a redação e a assinou em 24 de agosto de 1954.

Tudo o que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda
A frase virou música-título de Roberto e Erasmo Carlos em 1976, mas é do crítico americano Alexander Woollcott (1887-1943).

Um burro diante de dois fardos de feno é incapaz de comer.
A expressão "asno de Buridan", famosa na Idade Média para descrever a indecisão, era atribuída ao filósofo João Buridan desde 1340, mas ele não a cunhou.

Os entes não devem ser multiplicados além da necessidade.
O filósofo inglês Guilherme de Ockham (1280-1349) é muito lembrado por essa "Navalha de Ockham", que ele jamais enunciou.

O Brasil não é um país sério
Barcos franceses invadiram águas territoriais do Brasil à caça de lagostas em 1960. O episódio parou no gabinete de Charles de Gaulle, presidente francês, que prontamente convocou o diplomata Carlos Alves de Souza. Em Um Embaixador em tempos de crise (Francisco Alves, 1979), Souza lembra que, mais tarde, resumira a conversa com de Gaule a um repórter: “Pois é, Le Brésil n´est pas um pays sérieux”. O despacho telegráfico do repórter não atribuíra com clareza a autoria.

James Amado dizia que pouco importava se os poemas atribuídos a Gregório de Matos e Guerra (1636-1695) são de fato dele, mas que o século 16 chegou até nós por uma “poesia chamada Gregório de Matos”. É outra maneira de dizer que as palavras têm um efeito maior que os homens que as pronunciam.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Sínteses de um tempo

Que imagem resumiria a glória selvagem da Antiguidade romana? Qual o ícone de nossa civilização? Há descrições de cenas que parecem concentrar toda uma época num par de frases. Se me fosse dado o luxo de escolher, há duas que têm a força de reter a identidade (que, como se sabe, é contradição) de seu tempo:

Século XX
“A preservação de um arvoredo amado por Goethe dentro de um campo de concentração”
(George Steiner, Gramáticas da Criação, Globo, 2003: 13).

Império Romano
“Os romanos antigos construíram suas obras-primas de arquitetura, os anfiteatros, para animais selvagens se estraçalharem”
(Voltaire, citado por Daniel J. Boorstin em Os Criadores, Civilização Brasileira, 1995: 143)

E outras épocas, que ícones (verbais) teriam?

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Tatuagens verbais

O designer sueco Marc Strömberg, de 22 anos, editou o terceiro exemplar do fanzine Tare Lugnt na própria perna. A intenção não é, evidentemente, ornamental, mas fazer do corpo um caderno ambulante.

O fenômeno da morfologia corporal é recente, mas em evidência até num Brasil terceiro mercado mundial da tatuagem. O primeiro, EUA, tem 15 mil estúdios e 15% da população tatuada (National Geographic).

A modalidade verbal garantiu ao menos um caso bizarro por aqui: o motoboy Robson Pereira Granja matou o amante de sua mulher e teve o deleite de escrever no braço o nome da vítima e a data do crime.

O fenômeno não vê fronteiras e motivos. A americana Kari Smith, de 30 anos, leiloou a testa para um site canadense. Sua compatriota Mary Wohlford, de 80, gravou no peito “do not resuscitate", para que os médicos não a reanimassem em caso de um ataque cardíaco.

Estúdios do Brasil estimam que a tatuagem verbal só se tornou rotineira nestes cinco anos e 3% dos clientes tatua nomes, juras, letras de música, às vezes frases inteiras. Não mais, que o gênero sofre de “limitação do suporte": não há lugar no corpo para uma gramática de frases longas.

A tatuagem já sinalizou a reação do sujeito a um sistema marginalizador (o corpo última propriedade de quem não tem). Hoje, sugere que o tatuado é gestor de si mesmo. Ele intuiria no corpo um signo, uma convenção arbitrária. Como a foto está para o objeto e a pegada para o pé, a tatuagem ocuparia o lugar de algo que não se articularia de outro modo. Admitir isso é ver o corpo pertencente à ordem da imaginação, não do físico.

Como os magros que, anorexos, se acham gordos e vice-versa, se vice-versa houver.

segunda-feira, 27 de abril de 2009

Trapalhada tipográfica 2

Para o registro da trapalhada tipográfica que postei neste blog outro dia, com o erro que atormentou Machado de Assis (1839-1908) em 1902, mas só agora localizei a imagem:


A página é de exemplar raríssimo (só localizei dois, um do professor de Direito da USP José Alexandre Tavares Guerreiro e outro do empresário e bibliófilo José Mindlin).

Trata-se, como disse antes, de um dos primeiros exemplares da segunda edição de Poesias Completas, de Machado. O tipógrafo francês trocou a letra e por um a do verbo “cegar” do trecho “a tal extremo lhe cegara o juízo...”, na segunda linha da página VI do prefácio (iluminado em amarelo, acima).

Erro tipográfico, como se sabe, atrapalha o entendimento.

sexta-feira, 24 de abril de 2009

A antropofagia fonética do Maranhão

A jornalista Flávia Perin, então aluna de uma de minhas oficinas de redação, foi quem me chamou atenção para o fenômeno, flagrado acima pelo fotógrafo Meireles Jr. para a revista Língua. A capital do Maranhão, São Luís, virou a “Jamaica brasileira” porque o reggae reina nos bares, nas rádios, na preferência e na linguagem da população, desde 1985.

O efeito mais curioso dessa predileção é a "antropofagia fonética" que traduz o inglês jamaicano em genial nordestinês.

Como a maioria da população não tem familiaridade com a língua inglesa, mas adora reggae, as músicas do gênero são por lá chamadas de “melôs”.

Bad Reputation virou Melô da Cabra. Pois, de tanto o cantor Monty Montgomery repetir a palavra "bad" estendendo a vogal (/béééééd/), associou-se a música ao berro do animal.

White Witch, de Andrea True Connection, é o Melô do Caranguejo por causa da frase "white witch will gonna get you..." (“gonna get you” soa “ganaguejou”, daí variar para “garaguejo” até ser pronunciado como “caranguejo”).

O nome original de um melô jamaicano passa por uma acomodação fonética, cada reggae rebatizado segundo a sonoridade da letra.

A paródia do inglês macarrônico acabou virando traço cultural.

quinta-feira, 23 de abril de 2009

Como se faz um conto

Das histórias que pinçou para o recém-lançado Contos filosóficos do mundo inteiro (Ediouro), Jean-Claude Carrière crava preferência por uma historieta de notável sabor anedótico.

Um homem rico e um pobre levam cada um seu filho ao alto de uma montanha. O rico apóia a mão no ombro do seu menino e diz:
– Veja! Um dia tudo isso será seu.
O outro faz o mesmo gesto, mas simplesmente aponta:
– Veja.

Haveria uma visão sobre o humano nas sumárias linhas desse relato, diz Carrière, que não se avexa em tê-lo na categoria de conto filosófico. Fico ruminando o por quê.

Todo conto sempre conta duas histórias, partilha o argentino Ricardo Piglia em Teses sobre o conto, um ensaio de O Laboratório do escritor (Iluminuras, 1994: 37).

Em primeiro plano, há a história de superfície, a situação tal como descrita, movimento a movimento. Enquanto isso, o autor constrói outra história em segredo. A arte do contista, diz Piglia, é cifrar a história 2 nos interstícios da 1.

Que relatos estão em jogo na historinha colhida por Carrière (foto ao lado)? Penso que os seguintes:

História 1: o homem pobre não pode dizer o mesmo que disse o rico a seu filho, pois não tem a oferecer o mesmo, mas a paisagem, de graça, é de todos e de ninguém.

História 2: o mundo tem mais a oferecer que a mera posse dele e admirar-se ante um cotidiano que o olhar tornou opaco é já um legado raro.

É nas possibilidades abertas pela cena 1 que o relato 2 alcança a inflexão de conto. Se isso o torna filosófico, tanto melhor.

quarta-feira, 22 de abril de 2009

A frieza estatística

A Caixa, dizem os jornais de hoje, vai financiar geladeiras, item que teve o IPI reduzido pelo governo. A iniciativa pode corrigir uma distorção bem brasileira: mais de 2 milhões de casas no país (num universo de 47 milhões) têm televisor, não geladeira (IBGE).

Como anúncios de financiamento, há textos inteiros forjados só por estatísticas como essa. Mas encarar um fenômeno dessa maneira sempre leva gente a achar, por exemplo, que a plebe prefere a comida apodrecendo na cozinha a perder a novela.

Tendência estatística é um câncer do texto que, como o jornalístico, o acadêmico ou o relatório econômico, é feito com intuito de sustentar nossas posições cotidianas. A estatística pura, sem ser humano a lhe dar corpo, pode sacramentar preconceitos.

Por isso, em 2000, editando o suplemento Telejornal (hoje TV & Lazer) do Estadão, fiz reportagem em dupla com Alessandra Penhalver para ver quem se encaixava no índice do IBGE. De porta em porta, fone a fone, achamos gente como Carmem dos Santos, de Carapicuíba, São Paulo, rostos por trás do índice, que nos deram razões para a escolha: 1) geladeira é mais cara que TV; 2) sempre há quem divida o freezer, não o gosto por um canal.

Razões mundanas, jamais insensatas. “Desumanizar” um texto é falar de gente como quem fala de fenômeno climático. É também a fragmentação dos sentidos, o distanciamento, a abordagem opaca sem margem a dúvidas, um julgamento preto no branco a simular uma ordem e previsibilidade sobre o homem e a realidade, que, quase sempre, são desmentidas por apuração mais rigorosa.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

O pum da vaca

A TV Minuto, do metrô de São Paulo, retomou ontem a notícia:

SETOR LEITEIRO DOS EUA COMBATE
EMISSÃO DE GÁS ESTUFA DAS VACAS

Tucanaram o pum da vaca, pensei, e o tema seria pretexto para discutir o uso viciado dos eufemismos, não fosse sinal de uma síndrome de linguagem maior: a superstição de estilo.

A expressão é de Jorge Luis Borges. Traduz a crença de que toda concisão é sempre uma virtude, ao que se toma por conciso “quem se demora em dez frases breves e não quem maneje bem uma frase longa”, escreveu ele em Discussão (Bertrand Brasil, 1994: 15). É ter em vista “não a eficácia de uma página, mas as habilidades aparentes do escritor”.

A agricultura responde por 14% dos gases estufas do planeta. 1,5 bilhão de ruminantes emite uma dúzia de poluentes (muito metano, 2/3 da amônia no ar, etc.) ao arrotar e soltar pum. Cada vaca emite a mesma quantidade/dia de poluição de um carro.

A TV do metrô resumiu a coisa toda a duas linhas. Direito dela. A situação comunicativa impunha, claro, economia narrativa: mensagens curtas, para monitor, 2 linhas + foto, exibidas a tempo da leitura de um público que pode saltar do vagão a qualquer hora. O tema talvez não se prestasse, sem humor involuntário, a tal tipo de síntese. Mas o fato é que o caso sinaliza a superstição de estilo que tem virado a tônica da comunicação urbana.

A verbalização famélica de um simulacro de objetividade, esse laconismo que é outro modo de ser da inconsistência, talvez seja o efeito colateral comunicativo da era informática. O internetês (escrever “kbça” em vez de “cabeça”) pode ser só a faceta caricata de um fenômeno pouco visível antes da chegada de e-mails, PowerPoints, blogs (olha eu cuspindo no prato) e redes sociais. É notável que a nova febre seja o Twitter, serviço de papos em rede que limita cada texto a 140 caracteres. Eram 475 mil usuários em 2006. Viraram 7 milhões.

Mais virá, depois.